Na contramão de tendência mundial: Por que o Brasil quer taxar carros elétricos?

Na contramão de tendência mundial: Por que o Brasil quer taxar carros elétricos?

Após ouvir mais de mil políticos e representantes do governo e da sociedade civil em audiências públicas, o grupo de trabalho da Câmara dos Deputados que analisa a reforma tributária decidiu incluir os veículos elétricos na lista de produtos que podem ser sobretaxados, mesmo se produzidos no Brasil. O texto ainda precisa ser aprovado pelo Plenário da Câmara e pelo Senado antes de se tornar lei.

A escolha vai na contramão da tendência mundial de oferecer benefícios para aquisição de veículos elétricos por pessoas físicas e foi tomada em meio a uma falta de consenso entre setores do próprio governo, que não sugeriu a taxação em seu projeto de lei original.

Segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), somente na América Latina, oito países possuem legislação aprovada com foco em redução de tributos para carros elétricos.

Na União Europeia, todos os 27 países disponibilizam algum tipo de benefício tributário para compra ou posse de eletrificados. A estratégia do bloco tem sido a de aumentar o imposto de importação, enquanto reduz taxas para aquisição por pessoas físicas de veículos produzidos localmente.

Para os parlamentares brasileiros, porém, os problemas ambientais vinculados ao ciclo de vida desses veículos e o gasto energético para sua manutenção são definidores para colocá-los na lista do imposto seletivo (IS), que vai taxar produtos prejudiciais à saúde e ao meio ambiente. O chamado “imposto do pecado” deve desestimular o consumo destes e dos demais veículos.

Especialistas ouvidos pela DW acreditam que o lobby de parte da indústria e a preferência do país pela produção nacional de biocombustíveis, como o etanol, também falaram mais alto na escolha.

“Nós entendemos que o carro elétrico também é um carro que, do berço ao túmulo, polui, principalmente no túmulo”, afirmou o deputado Hildo Rocha (MDB-MA) na coletiva em que o substitutivo ao projeto de lei foi apresentado. “Não poderia ser diferente sua tributação no imposto seletivo em relação aos carros a combustão”, disse, complementando que “tratar diferente os iguais” seria contrariar o princípio da neutralidade.

A principal justificativa usada para a inclusão dos elétricos nessa lista é a dificuldade de reciclagem das baterias quando deixam de ser úteis para os carros. Isso foi considerado mais danoso dada a falta de estrutura do país para gerenciar a logística reversa e o descarte adequado de substâncias tóxicas que as compõem, tornando o material danoso ao meio ambiente.

Mas a ideia de que os carros elétricos seriam tão prejudiciais quanto aqueles movidos a qualquer tipo de combustível ainda é objeto de disputa na Casa. Os caminhões, por exemplo, ficaram de fora do IS dado o possível impacto que a sobretaxa teria na atividade produtiva e nos custos de frete do país.

Proposta
Por isso, a proposta dos deputados é graduar a alíquota do imposto seletivo dentro da metodologia “do poço à roda”, que analisa a eficiência energética dos veículos com base nas emissões de carbono em todas as etapas de seu ciclo de vida. Isso inclui, por exemplo, o impacto da geração de eletricidade para os carros elétricos.

Outros critérios de eficiência também servirão para o cálculo do imposto final, como a potência do carro, sua densidade tecnológica e a reciclabilidade de suas peças. Na prática, o imposto será proporcional à poluição, mas a taxação mínima de todos os automóveis vai partir sempre da alíquota padrão do imposto seletivo, que deve girar em torno de 34% – quase 8% acima dos demais produtos.

“Para os veículos que atenderem aos requisitos desejáveis, haverá um bônus em relação à alíquota base”, disse a representante do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), Margarete Gandini, em audiência pública. “A bateria do veículo elétrico tem uma pegada de carbono. Então, isso tem que ser contabilizado”, completou.

Para Fernando Caneppele, engenheiro elétrico e pesquisador do Instituto de Estudos Avançados da USP, já existe tecnologia a nível mundial para reciclagem de baterias elétricas. Ainda antes do descarte, elas também podem ser usadas para outras funções após perderem capacidade de aplicação nos veículos. Um exemplo é o armazenamento de energia renovável intermitente, ou o backup de energia para hospitais e data centers.

“Na transição energética, o uso de baterias é muito necessário. Já temos demanda nesses sistemas [de energia solar e eólica]. Em países que tenham matrizes elétricas mais renováveis, como é o caso do Brasil, os modais de transporte elétrico são menos impactantes ao meio ambiente que outras tecnologias”, disse à DW.

Biocombustíveis
A pressão imposta pelo já estruturado mercado de biocombustíveis no país também influencia a decisão. Em audiência sobre o tema, por exemplo, o diretor da Bioenergia Brasil, Roberto Hollanda Filho, defendeu que o imposto seletivo não pode privilegiar os carros elétricos em detrimento dos flex, criados há mais de 20 anos no Brasil e que permitem o uso do etanol.

“Nós não somos excludentes, não podemos tratar de modo diferente uma tecnologia que progrediu aqui, que é uma característica da nossa frota veicular, em detrimento de uma tecnologia que está chegando e ainda é muito limitada”, afirmou.

Ele argumenta que o Brasil já vinha em uma lógica de valorização do biocombustível como alternativa de mobilidade sustentável. É exemplo o projeto Combustível do Futuro, em tramitação no Senado, que cria programas de incentivo ao biometano, etanol e biodiesel, e o Mover, que virou lei no final do mês passado e oferece crédito para a produção sustentável de veículos no Brasil – esse incluindo os elétricos.

Críticas
O presidente da Associação Brasileira de Veículo Elétrico, Ricardo Bastos, entendeu como contraditória a definição dos deputados. “Os veículos elétricos e híbridos reduzem ou cortam a zero as emissões de poluentes nocivos, diminuem a poluição sonora e contribuem com a redução dos gases do efeito estufa”, afirmou em nota.

Bastos também defende que a medida vai impactar o mercado de elétricos e híbridos no Brasil, que acumulava 300 mil em circulação desde o início da série histórica, em 2012. “A base conceitual desse imposto é penalizar os produtos que fazem mal à saúde e ao meio ambiente. E a eletrificação não faz mal nem à saúde e nem ao meio ambiente”, completa.

Para o professor de direito tributário da FGV Salvador, Cândido Brandão Junior, falta uma justificativa clara ou estudo que calcule o real impacto ambiental para a sobretaxa. “As baterias têm resíduo, mas aí poderia ser um imposto seletivo sobre a bateria e não sobre o veículo. Dizer que a bateria é poluente ou o carro elétrico tem pneu, pareceu ser um pouco criar uma justificativa para poder incluir um imposto seletivo”, disse.

A procuradora do estado do Rio Grande do Sul e professora de direito tributário da PUC-RS, Melissa Guimarães Castello, vê contradição na cobrança casada de imposto seletivo para veículos elétricos e à combustão.

“Na medida em que quando eu tenho duas formas alternativas de fazer transporte – uma comprovadamente mais nociva para o meio ambiente e a outra menos nociva – não me parece fazer sentido cobrar seletivo das duas, especialmente no Brasil, que tem uma matriz de geração de eletricidade muito limpa”, observa.

Experiência internacional
Outros países têm preferido diminuir os impostos de aquisição e manutenção destes veículos, por entenderem que o dano ao meio ambiente da queima de combustíveis fósseis é maior. Segundo a OCDE, 26 milhões de veículos elétricos estavam nas ruas em todo o mundo em 2022, mais da metade deles na China, ano em que mais da metade dos países possuía política relacionada à aquisição de automóveis eletrificados.

A União Europeia, por exemplo, adotou novas metas de emissão de CO2 para carros e vans até 2030. Um levantamento da Associação Europeia de Fabricantes de Automóveis (Acea) mostra que todos os 27 países do bloco oferecem algum tipo de benefício fiscal para quem possui veículos eletrificados. Destes países, 21 também reduzem o imposto para a compra desse tipo de automóvel, e 17 beneficiam diretamente as montadoras.

Outros 23 países criaram sistemas alternativos de incentivo, como a concessão de crédito para quem comprar um carro elétrico, e cinco já beneficiam empresas que contribuem com a infraestrutura de carregamento de baterias. Mesmo que fragmentada, a legislação europeia se reflete nas vendas, aponta a Acea. A venda de carros elétricos e híbridos aumentou 37% em 2023 e ocupa 15% do mercado.

Nos Estados Unidos, a Lei de Redução da Inflação facilitou a produção de baterias e a Agência de Proteção Ambiental americana criou um roteiro para incentivar a venda de carros elétricos, que cresceu 47% no ano passado. Neste ano, o governo ainda criou um crédito fiscal de até 7,5 mil dólares para quem compra estes veículos, desde que o conteúdo das baterias siga critérios de composição e o automóvel seja montado em território americano.

A OCDE ainda lista a experiência de países como Tailândia e Indonésia, que oferecem incentivos para tornar os veículos elétricos mais atrativos. Já a Índia lançou mão de uma política de subsídios na casa dos US$ 2 bilhões.

 

Por Gustavo Queiroz
Deutsche Welle - via NovaCana